30 de mar. de 2007

Se, talvez

Se eu não tivesse este coração tão cansado,
estes olhos tão atentos,

desconfiados,
esta língua tão afiada,
estas mãos tão trêmulas,
este medo de fantasma,
este pavor de amar de novo,
se eu não fosse assim tão maltratada,
talvez eu me entregasse a você feito a primeira vez,
deitasse no seu colo como encantada,
fechasse os olhos e lhe desse as mãos
para que me guiasse pela cidade
perigosa, esburacada,
dissesse coisinhas ridículas,
pensasse em ter um cachorro e uma gata,
cinco filhos e férias na Eslováquia,
e terminasse este poema com o seu nome,

que seria, para mim, a mais bonita das palavras.

mrs. mojo rising

15 de mar. de 2007

Canção

Tentei escrever, eu mesma tentei colocar no papel o que me queimava, mas acho que Cecília Meireles já o fez por mim. Portanto...

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.


mrs. mojo rising

12 de mar. de 2007

Ovos fritos

Como estivesse morrendo de fome, Carlos entrou num restaurante, um lugarzinho nem lá nem cá, relação custo – benefício condizente com seus rendimentos. Pediu coisa básica:

– Arroz, feijão, batata-frita e um ovo frito, por favor.
– Dois – respondeu o garçom.
– Não, não, um ovo só.
– A casa não trabalha com um ovo só, senhor.

Carlos desorientou-se e não conseguiu responder que também gostaria de uma coca-cola light quando o garçom lhe perguntou se queria

– Algo mais, senhor?

Sem resposta, o funcionário retirou-se. Carlos voltou a si e chamou-o novamente.

– Meu bom rapaz, estou ficando louco, talvez surdo, ou você me disse que não pode me trazer apenas um ovo frito?
– Não, o senhor não está louco nem surdo.
– Sei... E por que isso? Até onde entendo, as galinhas põem um ovo de cada vez, certo? Certo ou errado?
– Senhor, não sei dizer, não.
– Você não sabe dizer se as galinhas colocam um ovo de cada vez?
– O senhor gostaria de falar com o gerente?

Carlos balançou a cabeça num sim, passando a mão pela testa suada. Enquanto o garçom se afastava, pensou que poderia deixar o caso mais barato e aceitar que lhe trouxessem dois ovos fritos. Não pesaria nem no bolso nem no estômago. Comeria um e deixaria o outro lá, ou comeria os dois, tanto faz, isso não mudaria muito o curso da história. Continuaria o seu dia tranqüilamente, sem estresse, sem pensar mais em ovos. Ah... Tudo ocorreria como fora planejado quando resolveu entrar naquele restaurante. Mas Carlos era um homem de princípios. Essa atitude pesaria no cérebro. Não conseguia ceder a uma imbecilidade dessas. Como dormir o sono dos justos depois de tamanho despautério? Não, ele não cederia. Questão de honra.

– Pois não, senhor, eu sou o gerente.
– Bem, é o seguinte: eu quero um ovo frito, apenas um, e esse rapaz disse que vocês só "trabalham" com dois.
– Isso mesmo.
– E por quê? Por que isso? A galinha não põe um ovo de cada vez? Põe, é um ovo de cada vez. Já morei em fazenda, tenho certeza disso. E mesmo que pusesse dois, ora bolas, eu, agora, nesse momento, só quero...
– Acalme-se, senhor,o senhor está ficando vermelho.

Carlos passou a mão pela testa novamente.

– A questão é simples, senhor: os dois ovos são uma longa tradição aqui no nosso restaurante, que já existe há 47 anos. O nosso restaurante. A tradição é um pouco mais recente, deve ter aí uns 30. Sempre servimos ovos em pares. Nossos clientes assíduos já sabem disso e até gostam dessa nossa peculiaridade. Os novos, quando ficam sabendo, não questionam e até gostam também, pois sempre acabam comendo os dois. Muitas vezes não sabemos medir nossa real fome, não é mesmo? Até poderíamos, senhor, quebrar essa regra agora, trazendo apenas um ovo na sua refeição, mas teríamos de resolver uma situação complicada.

Pausa.

– Que si-tu-a-ção?
– Pense bem, senhor, pense bem: se sempre vendemos os ovos em pares e agora vendermos apenas um para o senhor... Entende?
– Entende o quê?
– Senhor... Não é óbvio?
– ...
– Senhor! O que faríamos com o outro ovo? O que faríamos com o ovo que deveria acompanhar esse um que o senhor pediu? Hein? Hein?


clarissa

Essa história é baseada em fatos reais.