31 de mai. de 2010

eu (?)

não é estranho estar de volta
estranha é essa incrível capacidade de adaptação
como se não fosse eu lá
ou não sou eu agora?
talvez seja justamente essa característica
que me faça ser eu
de outro modo, seria outra coisa
igualmente eu no sentido físico
mas diferente do que se sabe de mim
do ponto de vista químico, psicológico
sociológico e demais vieses invisíveis

21 de mai. de 2010

quereres*

eu sei que você não gosta de musical, mas eu queria colocar uma rosa no cabelo preso, sapatear com meus sapatos de tachinha comprados na Espanha, fazer uns movimentos com o xale, depois com o leque, depois usar as castanholas. eu sei que você ia considerar tudo muito ridículo, mas eu queria saber que me achou bonita, que me achou a mais bonita de todas, que me desejou, que se imaginou um dançarino daquele filme para poder fazer par comigo e me olhar sem levantar suspeitas do seu desejo proibido. eu queria que me contasse em sussurro sobre as noites e os banhos em minha homenagem e os poemas que escreveria para mim se soubesse escrever poemas. eu queria que você me tocasse, que mexesse nos meus cabelos, que ficasse embasbacado reparando nos detalhes do meu rosto, da minha pele, dos meus pés, da minha barriga marcada, que beijasse a palma da minha mão, que lambesse a minha virilha. eu queria que você se declarasse, que dissesse que viveu até ali para me conhecer, que me levasse para algum lugar esquisito, que me escolhesse para ser sua mulher, sua amante, sua puta e sua companheira, que me fizesse ser a primeira.

*Da música de Caetano Veloso:

"(...)
Eu queria querer-te amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és

Ah! Bruta flor do querer
Ah! Bruta flor, bruta flor
(...)

O quereres e o estares sempre a fim
Do que em mim é de mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal
Bem a ti, mal ao quereres assim
Infinitivamente pessoal
E eu querendo querer-te sem ter fim
E, querendo-te, aprender o total
Do querer que há e do que não há em mim"

intermitente

aproveita o intervalo livre da febre
e reproduz aqueles dias que sugeriam dança
depois cria presentes dias
melhores porque agora
ou porque melhores mesmo
ou porque prescindem de gente

– sem espera pela argumentação de um
o convite de outro
a oportunidade para explicar que tentou
(por que não voltou para buscar os brincos?) –

em espiral estende seu sorriso grande e tonto
antes de estar quente outra vez
no silêncio benéfico porque óbvio

12 de mai. de 2010

dúvida

cada curva que você faz o coloca no mesmo lugar
de arranque
expectante da vida

tenho um defeito de uso
aparentemente não tem conserto

você em curva ininterrupta
eu em dor intermitente
- aproveite o intervalo livre da febre -

e não me diga que não é assim

8 de mai. de 2010

sem título

depois dos desatinos
espectros que rondam o turbilhão diurno
- não é verdade que mais escuro é mais medo -

eu entrei naquele corredor bem acordada
eu cantei com o ipod e arrisquei uns passos de pernambuco
tendo por parceiro meu carrinho de soro e de NPT
era muito claro não se pode dizer o contrário

mas o corredor sumiu nos dias seguintes

tive morfina no sangue
e pelo menos uma noite foi como dia
o medo era pela loucura
não pelo dito não pelos espectros
era alucinação com pessoas vivas
à beira da minha cama de doente
as minhas pessoas queridas