25 de fev. de 2006

O menino e ela

Tinha olhos amarelos,
o menino.
Era um gato preto,
vira-latas.
Tinha mãos transparentes
e cabelos de vento.
Tinha pouca idade,
muitas vontades,
nenhum juízo.
Ela era assim,
meio assim,
perdida e sozinha,
gostava de música
e tinha pesadelos.
E gostava do menino.
E o menino, dela.
Mas alguma coisa se perdeu,
o caminho era contra-mão,
o ônibus passou direto
e tudo foi como tinha de ser.


clarissa

24 de fev. de 2006

Sobre agora

De perto era aquilo
O contrário do que deve ser
Uma palavra
Um sorriso
E raiva daquele que não pára
Que só passa
Que interrompe
Tempo errado
Vi teus olhos num sinal de trânsito
Não pude atravessar a rua
Um mundo ao contrário
Somos daqui?
Te vi dormindo
Estive no teu sonho como nuvem
Teus olhos mudaram de cor
Ainda assim, não pude atravessar
Desejo de voar
Sair daqui
Sair
Sair
Sair
Ouvi tua voz
Susto
Não sou perfeita
Tive medo
Tenho medo
Tenho a coragem de dizer que tenho medo
E, no entanto, estou bem
Mesmo que o impulso me transforme
Num trapezista sem rede
Num carro sem freio
Num doente sem remédio
Num balão sem gás
Numa esquina deserta e escura
Num avião sem asas
Num pássaro diante de um gato
Estou bem
Estou bem
Estou bem
A química ainda corre pelo meu corpo
Não sinto sede
Não sinto fome
Não sinto cansaço
Não sinto sono
Não te sinto mais
Não te vejo mais
Não me tenho mais
Tremo e trinco os dentes
A química pelo meu corpo
A cabeça que não sossega
Penso da forma que é de pensar em algo bom
Tua risada
Teu cabelo
Tua blusa branca
Tua tatuagem
Tua fama de mau
E se não for o que não tiver de ser
E se for como é para ser
Ou como não é para ser
E se amanhã for um dia chuvoso, feio e cinza
E se não acontecer de novo
E se nunca mais eu vir teus olhos num sinal de trânsito
E se eu não for mais nuvem no teu sonho
Nem louca
Nem medrosa
Nem impulsiva
E se, então, for outra coisa qualquer
Ainda assim terá valor
Valor de lembrança boa
De ar-condicionado em dia quente
De cigarros trocados
De músicas dançadas
De mãos e bocas e o subjetivo
Valor de tempo que não pára quando a vida está [perfeita
Valor que me faz saber que vou morrer de saudade


mrs. mojo rising

20 de fev. de 2006

Paz, pulsos, liberdade

Não sei se a história é exatamente assim. Quem pode saber? Nem os protagonistas podem, porque cada um só vê do seu ângulo aquilo que é sempre muito grande. E as palavras... Quem é que fala e ouve corretamente, no sentido de dizer aquilo que realmente quer? Interpretações, interpretações. E quem é que sabe o que realmente quer? Só sei que me chegou aos ouvidos o seguinte: Marina andava tão triste, tão triste, que cortou os pulsos numa terça-feira de carnaval.

Disseram que o motivo da tristeza era Júlia, a menina de olhos que se fechavam no sorriso. Disseram que ela não quis mais nada com Marina e que Marina não pôde resistir, que Marina só vivia pela Júlia, mas que Júlia já estava cansada e queria ir morar em Barcelona e conhecer uma catalã que soubesse usar castanholas. Disseram também - as pessoas dizem tanto! - que, certa vez, Marina deixou de ir morar em Londres só para ficar aqui com Júlia e que, agora, Júlia, ingrata, abandonava Marina por um par de peitos espanhóis.

Mas alguém disse também que Júlia era só uma menina que gostava de muitas coisas, de sonhar e de ver e de ouvir e de aprender e de sair por aí. Livre. E que não sabia que Marina gostava tanto dela e nem que deixara de ir para Londres por sua causa. Júlia talvez não soubesse que Marina sofria por não conseguir entender esse mundo e que, nela, encontrava a paz que jamais encontrara nos seus 23 anos de vida.

Não sei como tudo se deu de fato. Nem posso garantir que Marina tenha se cortado por causa de Júlia mesmo. Não pode ter sido outro motivo? Sempre pode. Também não me atrevo a julgá-las. Ninguém pode medir o tamanho da dor de quem se corta nem a dimensão do desejo de quem é verdadeiramente livre. Só posso garantir o que disse no início: Marina andava tão triste, tão triste, que cortou os pulsos numa terça-feria de carnaval.


clarissa

16 de fev. de 2006

Noite

De novo uma noite que vem:
trazer lembranças,
cobrar força,
obrigar a enfrentar um sono
tumultuado.
E perguntas sem respostas,
respostas que não ouso.
Não é tristeza, é falta.
De quê, não sei bem.
Não é raiva, é dor.
De quê, sei bem.
Nem melhor nem pior do que outras.
Apenas uma.
A minha.
Minhocas na cabeça,
milhões delas,
paranóia.
A minha.
Minha paranóia é um bicho peludo e feio
que me aparece em sonhos -
pesadelos.
Um bicho com cara de gente,
que gente é que bicho com esse sentido.
Evito dormir,
pois que quando deito e fecho os olhos,
o bicho me domina.


mrs. mojo rising

14 de fev. de 2006

Oh, Clyde!

Não posso explicar como essas coisas acontecem. Só me foi dado o dom de sentir e de ser. Quando fomos apresentados, Clyde mirou no decote do meu vestido e eu fiquei com as pernas bambas. Ora, quantos homens já não tinham feito isso? Quantos já não tinham feito mais do que olhar? Velhos, novos, bonitos, feios, magros, altos etc. Já quase dormi enquanto certos sujeitos beijavam meus seios. Como explicar minhas pernas bambas só com o olhar de Clyde? E só de imaginar o que seriam os lábios de Clyde no meu decote... Ah, só de imaginar, senti aquele arrepio por entre as coxas, subindo assim, sabe?

Clyde é um homem lindo, realmente. Mas isso não é o principal. O importante é que ele parece não ter noção de sua beleza e do poder que vem em conseqüência. Sorri como se seus dentes não fossem os mais brancos de todo esse mundo. Anda como se ninguém estivesse olhando. Fala como se sozinho fosse. Clyde não tem pretensões, é desleixado, não tenta ser mais nem sabe o quanto é. Olhou meu decote ignorando que tem olhos de vidro fatais, com malícia de criança, sem se dar conta de que estava olhando e de que minhas pernas ficaram bambas.

Percebi que era um homem que precisava ser atacado. Se fosse esperar por ele, era capaz de morrer sem conhecê-lo. Biblicamente, quero dizer. E foi uma semana depois do decote que eu o arrastei para as escadas do meu prédio, já sem calcinha - sutien nunca usei mesmo. Ele disse "que isso, menina?" e eu respondi "eu é que pergunto o que é isso, Clyde, ai, meu Deus, o que é isso?" Era um fenômeno. Não exatamente pelo comprimento e largura, mas pela carinha mesma dele, e também pelo gosto. Por tudo isso combinado. Definitivamente, não é tudo igual, não. Clyde me beijava a nuca, descia para os meus seios, barriga, lá, preenchia o vazio que toda mulher sente, um vazio físico mesmo - Freud já disse algo sobre e eu confirmo, que me perdoem as feministas. E era como se eu, mais visitada do que qualquer mulher despudorada, nunca tivesse sido tocada antes.


bonnie

13 de fev. de 2006

Ganhando experiência

Modéstia à parte, eu fui muito bem na minha primeira missão. Já falei sobre isso, sei. O chefe caiu de amores por mim, disse que nunca havia visto uma moleca tão inexperiente fazer um trabalho impecável.

- Eu nasci para isso.
- Tô vendo, tô vendo - dava baforadas num charuto fedorento com um tique sinistro nos lábios.

O reconhecimento é sempre bom, mas devido a isso, minha segunda missão foi assustadora.

A organização estava precisando de armas. Eu e outro rapaz, que já estava há uns cinco anos no esquema, fomos recrutados com o objetivo de interceptar um carregamento de armas para o paiol da Aeronáutica no Rio, o Parque de Material Bélico, no bairro da Ilha do Governador. Na madrugada de uma sexta-feira, furtamos 11 fuzis HK 33 e cinco pistolas calibre 9mm.

Nosso plano era muito simples e, por isso mesmo, muito bom. Além disso, graças aos deuses protetores dos foras-da-lei, as reações correram dentro do esperado. Homem é homem, ou seja, fica babaca quando vê mulher bonita com pouca roupa fazendo cara de frágil e fácil.

Ficamos a umas duas quadras do paiol, em uma rua em que o carregamento seria obrigado a passar. Fingi cair e torcer o pé quando eles dobraram a esquina. Os “bons” moços pararam para me socorrer - madrugada, a rua deserta, pecado deixar uma moça tão desamparada. Eram dois, apenas, e os dois desceram, claro. Ambos queriam tirar suas casquinhas da indefesa aqui. Sempre pensei que esse tipo de coisa fosse feita com mais segurança. Confesso que fiquei decepcionada – fácil demais. Mas nunca reclamo da sorte. Todo sucesso depende de um bocado de sorte e, modéstia à parte, novamente, eu nasci com meu bundão virado para a lua. Ah, não sei de nada nesta vida, mas quanto a isso, menor dúvida.

Como desceram para ajudar uma pobre e linda menina acidentada, não empunharam suas armas. Meu parceiro, que estava do outro lado da rua, deitado no chão como um mendigo, veio por trás e rendeu-os. Ficamos com as armas que seriam entregues ao paiol e com as particulares dos dois manés. Não os matamos, embora vontade não nos faltasse, mas é sempre melhor não deixar mortos. A repercussão é menor. Só um boboca vaidoso gosta de se ver nas páginas de jornais, na televisão. O bom profissional não quer ser reconhecido nunca. O que importa são os resultados.

O sucesso da operação foi tamanho que o rapaz passou a ser chamado de Clyde. Nós nos entendemos realmente bem, desde o primeiro momento. Conseguimos nos comunicar com o olhar até hoje. Incrível! E é óbvio que nos demos bem em outros assuntos também, mas isso é história para outro texto. Prometo que contarei com detalhes.


bonnie

10 de fev. de 2006

Castigo

Havia um menino encostado no portão de um prédio verde e azul, de muros altos e grades de cadeia. Enquanto eu estava pensando que verde e azul é uma combinação horrorosa, notei que ele me olhou desconfiado - o menino, não o prédio, embora, naquela circunstância, eu estivesse absolutamente pronta a enxergar olhos desconfiados em qualquer objeto inanimado. Entendi de pronto: eram três e meia da manhã, Botafogo, e eu estava sozinha, chorando, acendendo um cigarro no outro porque não tinha isqueiro. E eu era, para ele, uma patricinha, apesar de estar infinitamente longe disso. Pois não? Nem que eu quisesse. No money at all, pensei em voz alta.

- Quê?
- Nada.
- Dá um cigarro.
- Você é menor de idade.

Dar cigarro para criança, de jeito nenhum. Mas ele veio atrás. Insistiu um pouco mais e depois falou de outras coisas. Estava quimicamente alterado. Muito quimicamente alterado. Senti cheiro de cachaça e vi um branco no seu nariz.

- Quantos anos tu tem?
- Não sei.
- Pra onde tá indo?
- Tô te seguindo. Pra onde tu vai?
- Não sei.
- Ué, vai pra casa.
- Não tenho casa.
- Tu, bonitona assim, não tem casa? E por que tu tá chorando?
- Tenho uma casa que não é minha. Entende? Tô chorando por isso, e por um monte de outras coisas que eu não poderia te explicar.
- Hum... saquei. Mas... Ah, tu tem casa!
- Sim, tem um lugar onde tenho minhas coisas, onde durmo numa cama, tem ar-condicionado, tem pais e irmãs. Até gato tem. Mas eu não tô lá. Aliás, eu não tô em lugar algum. Eu morri, sabe? Mas esqueceram de me levar para o inferno. Ah, inferno, sim, que eu sei que fiz algo de muito ruim. Não sei o que foi, mas foi muito ruim. Tanto que este é meu castigo: eu morri e não me levaram. Isso é pior do que ir para o inferno.
- Tu não sabe o que é inferno. Se tu vivesse na rua...
- Com certeza tu tá me entendendo, porque tu sabe muito bem o que é viver sem viver, né? Viver de migalha, sem perspectiva e tal. Viver em dor. Não duvido de que tu já tenha sofrido muito mais do que eu. Mas aqui, na rua, agora, quase quatro da manhã, conversando com você, me sinto melhor do que em casa. Estou segura é na rua. As coisas são relativas. Não me sinto bem em casa.
- Tu tá maluca, não sabe o que tá falando. Tem casa, tem pai, tem mãe...
- Eu não sei o que tô falando nem você. Ninguém sabe. Minha dor é minha, só, e a sua, só sua. Eu já quis muito ajudar, mas não soube como. E, agora, tenho que tentar me salvar. Convencer Deus de que eu já paguei o que tinha de pagar. Agora ele tem de me deixar ir. Menino... Como é teu nome?
- Robson.
- Robson, eu morri. Eu não tenho mais alma, sabe? E o castigo é exatamente este: continuar viva estando morta. Entende?
- Entendo.
- Eu sei que sim.


clarissa