28 de jul. de 2006

Medida certa

Por isso tem uma hora
que a gente nem vai
pra não ter que voltar.
Que a gente nem fala
pra não ter que explicar.
Que a gente nem dança
pra não ter que parar.
Que a gente nem ama
pra não ter que odiar.

Mas vem o medo de não ser mais
gente.
De virar uma espécie de
planta.
De ficar cético,
azedo,
vinagre.
Sem expressão,
sem vontades,
sem caminhos,
sem paixões.

Sem sofrimento, é bom,
mas sem alegria também.

Qual é a dose?


mrs. mojo rising

19 de jul. de 2006

Sono

Eu fugi para o outro lado, o lado oposto. Pela química, não só fumaça, pela cabeça, mais do que medo. Calculei milimetricamente a distância de ver você e você não. Não só vergonha, mais do que sem controle. Tanta coisa consumindo meu corpo, mais mal que bem. Do bem, a vontade de continuar, não lembrar, acreditar, torcer, rezar até, por que não? - se não se ganha, também não se perde mais do que minutos. Do mal, desse há muito, infinito, mas ainda ganho a luta e ainda não é a prorrogação. Nos pênaltis, a sorte ajuda.

A fuga é providencial. Alivia. Afastada, respiro melhor. Nem tanto - rinite, fumaça -, mas isso é outra história. Respirar nunca me foi mesmo movimento fácil, não o faço sem sentir, natural. Costume, então agüento. O que é que não se agüenta nessa vida? Disso poderiam falar os suicidas, antes do ato. Mas antes do ato, quem sabe? Dizem que é sempre planejado e calado, mas sei não. Desconfio dos planejamentos e dos silêncios. Nos tropeços é que consegui as melhores cartadas. As piores também, mas isso não atrapalha minha teoria, porque as sentenças não se anulam.

É engraçada essa necessidade de vir aqui cuspir. E dolorosa, mais do que a fuga. Sim, é complicado fugir, cansa, obriga a uma atenção constante. Cuspir, também, por outros motivos, é meio óbvio - exposição, espelho, incompreensão, elucubrações, minhas e alheias. É chato explicar a piada, mas eu faço com parcimônia e paciência, tentando evitar mal-entendidos, embora ao final me esgote mais do que o próprio cuspir ou fugir. Afinal, a culpa é minha. Também seria assim com os suicidas, acredito. E como explicar a piada da morte? Mas o principal é o contraditório - por que cuspir e ter contato se tento desesperadamente fugir? Nesse caso, o suicídio é mais coerente.


mrs. mojo rising

14 de jul. de 2006

João e Maria

- João, eu não vou.
- Ah, vai. Vai sim.

Eu fui, então. Como discutir com João? Discuto com qualquer pessoa, menos com João. João é meio burro, leva trezentas horas e alguns minutos para entender uma explicação um pouco mais complexa do que algo como "porque eu não estou a fim".

Ele pegou minha mão e fomos andando meio descompassados. Meu pé ia ao chão quando o dele saía. Eu não sabia aonde estávamos indo e, embora contrariada, estava tranqüila, aceitara a derrota e seguia para a guilhotina, ainda na esperança, talvez, de ser salva pelo mocinho na hora exata.

- Mas o mocinho não é o João?
- Não, o mocinho ainda não apareceu neste filme.

- O quê?
- O que o que, João?
- Falando sozinha?
- Pode ser.
- Doida.

Chegamos a uma casa velha, um som tocava alto "like a rolling stone...". Ah, não, preciso sair daqui. Não demorou a aparecer na porta o diabo que me arrancou o coração. Seus olhos pareciam dizer que faltava pegar o resto do corpo e eu já estava quase acreditando nisso, quase pronta para a execução, quando João pegou de novo a minha mão e disse:

- Eu sei lá o que é, mas acho que você tem razão. Vamos embora daqui.
- Obrigada, João.

Ele sabia o que era, sim.


mrs. mojo rising

11 de jul. de 2006

Dessa coisa chamada esperança

(...) Por isso, quem não está satisfeito com a escassez que lhe coube na desigual distribuição dos bens do planeta, agarra-se à esperança de que o diabo nem sempre vai estar atrás da porta e que a riqueza lhe entrará mais cedo ou mais tarde pela janela dentro. Quem tudo perdeu, mas conservou ao menos a triste vida, considera que lhe assiste o humano direito de esperar que o dia de amanhã não seja tão desgraçado como o foi o dia de hoje. Supondo, claro que está, que haja justiça neste mundo. Ora, se neste mundo existisse algo que merecesse semelhante nome, não a miragem do costume com que se iludem os olhos e a mente, mas uma realidade que se pudesse tocar com as mãos, é evidente que não precisaríamos de andar todos os dias com a esperança ao colo, a embalá-la, ou embalados nós ao colo dela. A simples justiça (não a dos tribunais, mas a daquele fundamental respeito que deveria presidir as relações entre os humanos) se encarregaria de pôr as coisas nos seus justos lugares. Dantes, ao pedir a quem se acabava de negar a esmola, acrescentava-se hipocritamente que "tivesse paciência". Penso que, na prática, aconselhar a alguém a que tenha esperança não é muito diferente de aconselhá-la a que tenha paciência. É muito comum ouvir-se dizer que a impaciência é contra-revolucionária. Talvez seja, talvez, mas eu inclino-me a pensar que, pelo contrário, muitas revoluções se perderam por demasiada paciência. Obviamente, nada tenho de pessoal contra a esperança, mas prefiro a impaciência. Já é hora de que ela se note no mundo para que alguma coisa aprendam aqueles que preferem que nos alimentemos de esperanças.

José Saramago

Bão balalão,
senhor capitão,
tirai esse peso
do meu coração.
Não é de tristeza,
não é de aflição,
é só esperança,
senhor capitão.
A leve esperança,
área esperança,
área, pois não.
Peso mais pesado
não existe não,
ah, livrai-me dele,
senhor capitão.


Manuel Bandeira, musicado por Secos & Molhados

5 de jul. de 2006

Apaixonei-me



No divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase pagão que vence a sorte,
Num frémito vibrante de ansiedade,
Dou-te o meu corpo prometido à morte!

A sombra entre a mentira e a verdade...
A nuvem que arrastou o vento norte...
Meu corpo! Trago nele um vinho forte:
Meus beijos de volúpia e de maldade!

Trago dálias vermelhas no regaço...
São os dedos do sol quando te abraço,
Cravados no teu peito como lanças!

E do meu corpo os leves arabescos
Vão-te envolvendo em círculos dantescos
Felinamente, em voluptuosas danças...


(Florbela Espanca - "Volúpia")

bonnie

3 de jul. de 2006

Para E. S.

Todos os ângulos

Ficou de perfil para meu poema,
perfeito para uma foto pb.
Mas eu não sei pintar
a não ser em palavra.
Eu não sei falar
a não ser em branco.
Mas eu sei o que há
e é quase perfeito como uma foto pb.
Eu sei que está guardado
na minha melhor caixinha de
segredos e carinhos e suspiros.
Eu sei que é delicadeza
num tempo avesso,
é um sempre-querer.
Do sorriso ao sem-jeito,
dos óculos às mãos brincando
com o papel do cigarro,
da voz à implicância,
de todo o resto e
de todos os ângulos.
Eu sei que é um tempo bom
esse de ver seu perfil.


clarissa

2 de jul. de 2006

Para minha avó

[...] Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar

[...] Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais

[...] Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu

[...] Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi

[...] Que a saudade é o pior castigo [...]


(Chico Buarque)