23 de dez. de 2010

sem título

Era uma casa de vila, com muitas plantas no centro da vila e nas entradas das casas para impedir que as crianças brincassem. Os adultos têm disso. Em vão, criança não desiste fácil. Uma vez ela quebrou um dos vasos que enfeitavam (ou o inverso, é questão subjetiva) a entrada da casa 4. Andava de bicicleta naquele espaço potencialmente incrível para bicicletas, mas apertado pelas plantas, quando esbarrou no objeto que caiu e se partiu.

Mas isso não é importante, vasos caindo só têm relevância quando caem na cabeça de alguém. Fora isso, compra-se e põe-se a planta em outro vaso. Se tiver valor afetivo? Mas que ideia colocar afetividade num objeto inanimado!

Nessa casa de vila viu crescerem seus monstros. Foi nessa casa de vila que aprendeu a odiar. Esse é o ponto a se resgatar para profunda análise. Faço um recuo, porém. Embora difícil, é possível que a reação ao vaso quebrado tenha tido influência na construção dessa personalidade antissocial. Nesse caso, o vaso quebrado deveria ocupar um lugar de destaque na história.

13 de dez. de 2010

sem título

braços esticados
solicitações urgentes e inadiáveis
eu mesma com o meu estirado
as mãos em forma de concha
queria ter mãos maiores para caber mais
do quê?
de tudo o que oferecerem

mas há mãos realmente vazias
há braços precisando de resgate imediato
e não são as minhas
não são os meus
eu deveria ser um bote salva-vidas
esticar meu corpo como uma bengala
reverter a submersão alheia

e eu não sei

22 de out. de 2010

sem título

envelhecer é esvaziar o coração
tirar, espanar, deixar pronto
com critérios mais rígidos de preenchimento
ou - mais aconselhável - constantemente vago
encher esporadicamente
com doces de são cosme e são damião

ou perdoar
pois, crueldade maior,
negar perdão é pior do que o ato a ser perdoado

29 de set. de 2010

como um cigarro

não imaginava que era seguido
como um ex-fumante segue o cigarro de um transeunte desconhecido
aspira a fumaça de alguém que atravessa a rua ao seu lado

é mentira que o cheiro é ruim
é melhor que o seu, mas ambos viciam

gosto do cheiro do cigarro apagado
e do cheiro que, aceso, deixa nos dedos
gosto de sentir o cheiro dele na sua boca
sinto vontade de fumar sua boca
de tragar sua língua, seus dentes, seu pulmão
cinza como sua cabeça

não imaginava que era seguido assim
como um vício, uma doença, um hábito fatal
nem eu o sabia ainda

3 de ago. de 2010

sem título

Quando a vi entrar pela porta naquela tarde pensei que, sendo mulher, usaria uma meia-calça exatamente igual à que ela usava, mas jamais deixaria o cabelo chegar àquele tamanho, parecia uma evangélica. Definitivamente não gosto de evangélicos; não, é mais amplo, não gosto de religiões, não gosto de quem tem religião, não gosto de Deus, não gosto de nada que eu não possa compreender de alguma forma. Acho que é um tipo de preconceito, mas não faço a menor questão de me livrar dele. Se ela fosse crente, jamais teria me apaixonado. Confesso que seu cabelo gigante prolongou em cerca de quatro horas o nascimento dessa paixão. Posso dizer que, não sendo seu cabelo, eu teria me apaixonado quase à primeira vista. "Quase" porque um cético como eu não se apaixona sem matutar por pelo menos uns minutos, o que mata o conceito de primeira vista. Primeira vista é aquele pá-pum, aquela cena de novela, o sujeito vira em câmera lenta, bate o olho e gama. Tem que ter muita fé, coisa que, já disse, não possuo. Para ser sincero - não que eu não esteja sendo, é apenas uma correção para que tudo fique o mais próximo possível da verdade - nem tenho certeza de que esteja realmente apaixonado. Pode ser apenas um desejo enorme de transar com uma mulher que me é proibida. O proibido pode virar fácil e ilusoriamente o objetivo de uma vida.

16 de jul. de 2010

declaração

- Ele estava com outra?
- Não, só ficou olhando. Eu bem que gostaria.
- Que ele estivesse com outra?
- Sim. Que ficasse para sempre com a loura peituda.
- Quer me ver mal.
- Não é bem isso.
- Nunca pensei.
- Quero que fique sozinha.
- E triste.
- E livre.
- E sofrendo.
- E comigo.

14 de jul. de 2010

flerte

olhou-a como se a tivesse reconhecido, como quando a gente se vira para ver o que acabou de ver sem prestar atenção, a cabeça que se volta para a coisa que foi mal vista. ela disfarçou, fingiu não reparar, tantas moças mais bonitas que ela. virou-se para ver quem estava atrás - ninguém. decerto tinha o dente sujo, ou a blusa, ou o rosto. nada, ele gostou do seu nariz apontando para o infinito. era o único no recinto.

8 de jun. de 2010

sem título

gostaria de morar na mesma cidade que você
não, não estou dizendo que gostaria de morar em porto alegre
embora, sim, eu gostaria
mas quis dizer que gostaria que morássemos na mesma cidade
não vizinhos, porque a gente ia brigar no mínimo três vezes por [semana
embora eu tenha ficado menos briguenta depois de quase morrer

- mentira, estou mais briguenta ainda
mais irritadiça com as pessoas
mais misantropa do que nunca
só quero por perto quem me interessa
e, afinal, percebi que pode não haver tempo -

mas não gostaria de morar em salvador
nem em brasília nem em nova york nem em paris
imagino salvador como uma grande micareta
brasília, uma mega barra da tijuca, sem espaço para pedestres [desmotorizados
nova york, um grande shopping center
paris, um amontoado de pessoas blasés
lembrando da resistência e nunca da argélia

mas é claro que é apenas pré-conceito
nunca estive nesses lugares sequer como turista
e talvez morar na mesma cidade que você
fosse tão desastroso quanto a ignorância

31 de mai. de 2010

eu (?)

não é estranho estar de volta
estranha é essa incrível capacidade de adaptação
como se não fosse eu lá
ou não sou eu agora?
talvez seja justamente essa característica
que me faça ser eu
de outro modo, seria outra coisa
igualmente eu no sentido físico
mas diferente do que se sabe de mim
do ponto de vista químico, psicológico
sociológico e demais vieses invisíveis

21 de mai. de 2010

quereres*

eu sei que você não gosta de musical, mas eu queria colocar uma rosa no cabelo preso, sapatear com meus sapatos de tachinha comprados na Espanha, fazer uns movimentos com o xale, depois com o leque, depois usar as castanholas. eu sei que você ia considerar tudo muito ridículo, mas eu queria saber que me achou bonita, que me achou a mais bonita de todas, que me desejou, que se imaginou um dançarino daquele filme para poder fazer par comigo e me olhar sem levantar suspeitas do seu desejo proibido. eu queria que me contasse em sussurro sobre as noites e os banhos em minha homenagem e os poemas que escreveria para mim se soubesse escrever poemas. eu queria que você me tocasse, que mexesse nos meus cabelos, que ficasse embasbacado reparando nos detalhes do meu rosto, da minha pele, dos meus pés, da minha barriga marcada, que beijasse a palma da minha mão, que lambesse a minha virilha. eu queria que você se declarasse, que dissesse que viveu até ali para me conhecer, que me levasse para algum lugar esquisito, que me escolhesse para ser sua mulher, sua amante, sua puta e sua companheira, que me fizesse ser a primeira.

*Da música de Caetano Veloso:

"(...)
Eu queria querer-te amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és

Ah! Bruta flor do querer
Ah! Bruta flor, bruta flor
(...)

O quereres e o estares sempre a fim
Do que em mim é de mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal
Bem a ti, mal ao quereres assim
Infinitivamente pessoal
E eu querendo querer-te sem ter fim
E, querendo-te, aprender o total
Do querer que há e do que não há em mim"

intermitente

aproveita o intervalo livre da febre
e reproduz aqueles dias que sugeriam dança
depois cria presentes dias
melhores porque agora
ou porque melhores mesmo
ou porque prescindem de gente

– sem espera pela argumentação de um
o convite de outro
a oportunidade para explicar que tentou
(por que não voltou para buscar os brincos?) –

em espiral estende seu sorriso grande e tonto
antes de estar quente outra vez
no silêncio benéfico porque óbvio

12 de mai. de 2010

dúvida

cada curva que você faz o coloca no mesmo lugar
de arranque
expectante da vida

tenho um defeito de uso
aparentemente não tem conserto

você em curva ininterrupta
eu em dor intermitente
- aproveite o intervalo livre da febre -

e não me diga que não é assim

8 de mai. de 2010

sem título

depois dos desatinos
espectros que rondam o turbilhão diurno
- não é verdade que mais escuro é mais medo -

eu entrei naquele corredor bem acordada
eu cantei com o ipod e arrisquei uns passos de pernambuco
tendo por parceiro meu carrinho de soro e de NPT
era muito claro não se pode dizer o contrário

mas o corredor sumiu nos dias seguintes

tive morfina no sangue
e pelo menos uma noite foi como dia
o medo era pela loucura
não pelo dito não pelos espectros
era alucinação com pessoas vivas
à beira da minha cama de doente
as minhas pessoas queridas

2 de mar. de 2010

back

não queria
se pudesse não teria
não seria tomada por devaneios
por objetos que dizem tudo
provam nada
ausências que são como sinais de pedra
gigantes cheios de espinho
comparações estapafúrdias
mas lógicas e coerentes
pulando na sua frente
derrubando as barricadas
de defesa contra a verdade
esfregando na sua cara
que o caminho foi todo errado

23 de fev. de 2010

sem título

não estou apaixonado, não é isso. mas você tem razão, tem alguma coisa além do tesão, não é só tesão, não quero só comê-la. quero comê-la também. tá bom, eu quero muito comê-la e não quero namoro, mas também não quero que ela vire um puff depois. também não quero conversar, mas só porque não sou muito de papo. mas eu quero que ela fique ali por perto. eu quero saber que ela está por perto. eu quero senti-la por perto. ouvi-la abrir a porta da geladeira e pegar a garrafa de tampa verde e quase deixá-la cair porque é pesada e soltar um "puta que pariu" baixinho porque já está tarde. quero ouvir seu xixi na madrugada desse lado da Tijuca silenciosa e imaginar sua cara de medo de que eu possa estar ouvindo porque ela sabe que as paredes do meu apartamento permitem que o som vaze com muita facilidade. não quero dormir de conchinha que isso é muito brega, mas quero fazer cócegas nas suas axilas pela manhã só para vê-la com raivinha porque eu gosto quando ela faz essa cara, ainda mais com remela. não quero vê-la escovando os dentes porque tenho nojo, mas quero vê-la passando batom, dar tchauzinho sem beijo para não borrar a pintura e bater a porta com força por mais que eu peça para não fazer isso porque a porra da porta está quase caindo e eu não tenho dinheiro para consertar.

20 de fev. de 2010

condição

sabia, mas não queria. clássico. fingir é a palavra. melhor do que o tanto de tempo que ficou só. antes acompanhada. era carinhoso, presente, sentia que gostava dela. não amor, mas tudo bem: aprendeu a não exigir demais. não havia mais espaço para desejar além, tudo ocupado com a realidade. quando a realidade grita, a solução fica entre se adaptar ou viver se lamentando. quando se é terra com terra, não é possível partir para um mundo imaginário - fica-se condedado à sanidade.

difícil fingir, porém, quando se veem os rastros. por favor, apague aquela mensagem, não deixe o email aberto, não fique assim com esses olhos de comer. não na sua frente. não na frente de todos. vergonha, não hipocrisia. não era difícil a não ser quando os outros percebiam. saber-se enganada fazia parte há algum tempo da sua sobrevivência sem sofrimento, mas que os outros soubessem exigia atitude que não queria tomar.

9 de fev. de 2010

fim

então por bobeira
bobeira de passado
machucado na cabeça difícil de sarar
sara não
fica martelando latejando
fica lá que não sai de jeito nenhum
fazendo pensar coisa ruim
só coisa ruim na cabeça doente
que mesmo sabendo de tanta coisa melhor
mais importante altruísta e de mudar o mundo
não pensa

2 de fev. de 2010

visões

caiu no erro de pensar que poderia saber tudo como naquele dia que achou que soubesse até o que eu estava pensando e então perguntou por que estava emburrada só para saber se diria o que ele achava que sabia e eu disse que eram problemas no trabalho o que era verdade pelo menos naquele dia mas não acreditou porque caíra no erro.

aprendi a interpretar seu rosto como naquele dia que achei que soubesse até o que ela estava pensando e então perguntei por que estava emburrada só para saber se me diria a verdade e ela disse uma coisa que nitidamente não era verdade pelo menos não naquele dia mas fingi acreditar embora não tenha certeza de que a convenci.

não sei até que horas fiquei olhando para o teto branco nem lembro se o vi indo embora às vezes parece que não estou viva mas dispenso terapeuta para me dizer o óbvio saco tanto de neurose que conheço mais as suas do que ele mesmo e realmente penso que meu problema financeiro é maior do que sua ausência só que ele não dói e eu não gosto de dor.

ficou olhando o teto branco enquanto eu explicava parecia estar morta acho que seria bom fazer terapia foi o que me ajudou desde o acidente não dei conta me desculpe não foi de propósito não sei mais o que dizer só que talvez tenha feito por achar que você também fazia se precisar de grana pode pedir fique em paz.

estou com raiva raiva raiva.

...

4 de jan. de 2010

balanço pessoal resumido

é certo que perdi em 2009
virgínia ex-punk de vila isabel
recuperando-se na glória
não teve tempo de conhecer copacabana

perdi mais? não me lembro
isso parece bom

ah perdi quilos
e proteína demais no xixi
e descobri glicose e colesterol altos
o cigarro aparentemente ainda não se manifestou

poderia ter tido mais dinheiro
mais paciência
mais humildade
mais horas de sono

menos paranóia
menos ciúme
menos raiva

***

é certo que ganhei em 2009
porquinho-da-índia
mais bonito que o de manuel
o qual descortinei corajosamente
maravilha também interna
divisão de armário
cama tv computador
cesto de roupa suja

***

família e amigos: amor
carinho confiança
brigas perdão
dinheiro emprestado
lá e cá

***

virgínia
meu bem
tive culpa
mas não foi proposital

virgínia

virgínia

virgínia

3 de jan. de 2010

véspera

copacabana não notou
como talvez não tenham notado
os outros bairros

como talvez não os tenha notado
como diversas coisas que deveria e não
enquanto outras que não deveria e sim

ou deveria mas de outro jeito

uma menina me roubou um cigarro
teria dado se pedisse

ou talvez não
cigarro ficou caro
descobriram que mata

- quem fuma morre, minha filha
quem não fuma, também

disse a senhora de 83 anos
fumando seu cigarro no fundo da vila

ou talvez achasse a idade pouca

havia muita gente na rua
não me senti só na multidão
nunca me sinto só na multidão
desejei que mais da metade daquela gente não existisse
não que morresse - que nunca tivesse existido