10 de fev. de 2006

Castigo

Havia um menino encostado no portão de um prédio verde e azul, de muros altos e grades de cadeia. Enquanto eu estava pensando que verde e azul é uma combinação horrorosa, notei que ele me olhou desconfiado - o menino, não o prédio, embora, naquela circunstância, eu estivesse absolutamente pronta a enxergar olhos desconfiados em qualquer objeto inanimado. Entendi de pronto: eram três e meia da manhã, Botafogo, e eu estava sozinha, chorando, acendendo um cigarro no outro porque não tinha isqueiro. E eu era, para ele, uma patricinha, apesar de estar infinitamente longe disso. Pois não? Nem que eu quisesse. No money at all, pensei em voz alta.

- Quê?
- Nada.
- Dá um cigarro.
- Você é menor de idade.

Dar cigarro para criança, de jeito nenhum. Mas ele veio atrás. Insistiu um pouco mais e depois falou de outras coisas. Estava quimicamente alterado. Muito quimicamente alterado. Senti cheiro de cachaça e vi um branco no seu nariz.

- Quantos anos tu tem?
- Não sei.
- Pra onde tá indo?
- Tô te seguindo. Pra onde tu vai?
- Não sei.
- Ué, vai pra casa.
- Não tenho casa.
- Tu, bonitona assim, não tem casa? E por que tu tá chorando?
- Tenho uma casa que não é minha. Entende? Tô chorando por isso, e por um monte de outras coisas que eu não poderia te explicar.
- Hum... saquei. Mas... Ah, tu tem casa!
- Sim, tem um lugar onde tenho minhas coisas, onde durmo numa cama, tem ar-condicionado, tem pais e irmãs. Até gato tem. Mas eu não tô lá. Aliás, eu não tô em lugar algum. Eu morri, sabe? Mas esqueceram de me levar para o inferno. Ah, inferno, sim, que eu sei que fiz algo de muito ruim. Não sei o que foi, mas foi muito ruim. Tanto que este é meu castigo: eu morri e não me levaram. Isso é pior do que ir para o inferno.
- Tu não sabe o que é inferno. Se tu vivesse na rua...
- Com certeza tu tá me entendendo, porque tu sabe muito bem o que é viver sem viver, né? Viver de migalha, sem perspectiva e tal. Viver em dor. Não duvido de que tu já tenha sofrido muito mais do que eu. Mas aqui, na rua, agora, quase quatro da manhã, conversando com você, me sinto melhor do que em casa. Estou segura é na rua. As coisas são relativas. Não me sinto bem em casa.
- Tu tá maluca, não sabe o que tá falando. Tem casa, tem pai, tem mãe...
- Eu não sei o que tô falando nem você. Ninguém sabe. Minha dor é minha, só, e a sua, só sua. Eu já quis muito ajudar, mas não soube como. E, agora, tenho que tentar me salvar. Convencer Deus de que eu já paguei o que tinha de pagar. Agora ele tem de me deixar ir. Menino... Como é teu nome?
- Robson.
- Robson, eu morri. Eu não tenho mais alma, sabe? E o castigo é exatamente este: continuar viva estando morta. Entende?
- Entendo.
- Eu sei que sim.


clarissa

4 comentários:

Anônimo disse...

Foda!

Tatiana disse...

Lindo, Cris!!!
A dor é algo só da gente... e mesmo que todos tentem, só a gente sabe o qto machuca essa dor. :)
Lindo texto.
Beijão no coração

Anônimo disse...

"que mistério tem 'clarissa' pra guardar-se assim, tão triste, no coração?" (caetano/ capinam)

não quero vê-la como a moça da canção acima, a "clarice", que se despe para a "vida" quando o barco está partindo. é só um desejo, zero de cobrança. é difícil, dói, eu sei. mas vamos tentar?

dar a volta por cima, clarissa, que a gente merece a felicidade.

tô do teu lado.

o texto é lindíssimo!
vc é lindíssima!

beijo abraço carinho & cafuné deste preto que muito te ama!

Anônimo disse...

Obrigada, Lu.

Tati, como me descobriu eu aqui? *rs* Ah, legal!!! Bom que você entendeu e gostou.

Paulinho, fica por perto que já está tudo bem. :)

Beijos, amiguinhos.